Os demônios de Dostoiévski

Isabela Dias
45 min readDec 10, 2023

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Depois de ler uma série de livros de Dostoiévski, algumas questões me intrigaram, não aquelas relacionadas aos personagens em si, mas àquilo de comum às histórias, ideias fixas das quais o autor não conseguia ou queria se separar, ligadas à formação do Império Russo, à sua própria vida ou à vida de pessoas publicamente conhecidas, que acabaram, direta ou indiretamente, contribuindo com suas obras. A partir da crença na Igreja Ortodoxa, Dostoiévski parecia possuir uma visão bastante particular do mundo, da religiosidade, da redenção, de tal forma que seus ambientes apocalípticos encontraram um paralelo crítico interessante com a pregação de Santo Agostinho, como se fôssemos capazes de regressar ao mundo feudal e restabelecer a conexão do homem com a sua natureza: o homem é formado de uma união indivisível do corpo e da alma, da intuição (ou instinto) e da razão. É o mundo antes dos Neoplatônicos que ele busca retomar, com o qual ele sonha.

O que falar da maneira como ele decidiu traçar suas obras literárias, o jeito contraditório de falar da virtude apresentando-nos a podridão, de falar da fé nos fazendo mergulhar no niilismo, de tratar da salvação da alma e do fantástico nos jogando no abismo do realismo da sua época, realismo este trazido das escolas francesa e alemã, mas denominado por ele mesmo “de coisa absolutamente russa”, tal como uma bandeira ou um símbolo de um “destino manifesto” tipicamente eslavófilo?

A lógica de Dostoiévski parece ser a da inversão, do PARADOXO, digo, de se dizer o que não se deve para chegar aonde se pretende. A figura de linguagem mais presente, como ele mesmo expressa diversas vezes, é a da ALEGORIA. A inspiração vem dos jornais e das transformações que vê na cidade de São Petersburgo. O objetivo do autor é o da reconciliação com Deus (e com o próximo).

Essa discussão começa pela certeza de que Dostoiévski conhecia muito bem a história da formação do país e acompanhava muito atentamente as questões sociais russas que se travavam no submundo (ou subsolo), sendo, portanto, capaz de descrever com perspicácia os primeiros movimentos subterrâneos que iriam gestar a revolução de 1917 e a I Grande Guerra, ocorridas quase cinquenta anos depois da sua última obra (prima) “Os Irmãos Karamázov”.

Digo que morreu na sua hora, na hora certa, antes de ver que tudo o que havia pormenorizadamente visionado, que o Apocalipse que previra em “Os demônios” tornar-se-ia, enfim, verdade, seja na Rússia ou fora dela.

INTRODUÇÃO HISTÓRICA

De acordo com Tragedy and Hope, de Carroll Quigley (Russian Empire), a civilização russa deriva de 3 etnias: os eslavos, os vickings e os bizantinos. Oriundos do leste da Polônia, os eslavos foram os primeiros a ocupar parte do território que poderia se chamar de Rússia atual. Nômades e pacíficos, dependiam da caça e da agricultura rudimentar para sobreviver, motivo pelo qual, desde 1 AC até 700 DC, se espalharam pelas florestas centrais da Europa em toda a área entre as atuais Ucrânia (Kiev) e Finlândia.

Nesse momento, é importante comentar que a Rússia se divide em 3 regiões climáticas distintas que muito contribuíram para esse processo de ocupação eslava: ao norte, uma região plana e bastante gelada se reveste apenas de arbustos e tundras, com pouca fauna, consequentemente, limitando a permanência humana; no centro, uma área também plana e de vastas florestas se estende quase infinitamente até Vladivostok (a leste); ao sul, a região das estepes se divide em duas, a primeira mais próxima da floresta, coberta de “terra negra”, excelente para a agricultura, enquanto a segunda, ainda mais ao sul, semiárida, coberta por um platô salgado típico do recuo do nível dos oceanos, tal como o existente também na Namíbia, na altitude de 800 metros.

Em 700 DC, os vickings cruzaram o Mar Báltico aproveitando-se da navegação fluvial — grande parte do percurso — e atacaram Constantinopla (Turquia/Ucrânia), escravizando parte da população e obrigando a outra parte a pagar tributos.

A presença dos vickings acabou por exercer pressão nos povos eslavos que já se espalhavam pelo platô central russo, empurrando-os lentamente para o leste e para o sul. É justamente nessa época que surgem as fortificações de Novgorod e Kiev, respectivamente ao norte e ao sul desse platô.

Militaristas e territorialistas, os vickings forçaram seus casamentos com mulheres eslavas e espalharam-se rapidamente para o sul, tomando as terras negras e iniciando a troca de mercadorias com os bizantinos. A miscigenação com os eslavos fez surgir uma sociedade de duas classes sociais bem distintas: governantes (elite) e a de servos e escravos.

Com a aproximação com os bizantinos, a elite militar e territorialista (vicking/eslava) entendeu que dois aspectos da cultura bizantina favoreceriam ainda mais a manutenção do status quo: incentivaram a formação de um estado totalitário, permanente e indivisível, e o estabelecimento de uma única religião (Igreja Ortodoxa) como parte inseparável desse estado.

Além desses dois aspectos fundamentais, a elite também agregou para si um líder com o estigma de divindade (Tzar ou Czar, de César — Romanos); manteve a Igreja Ortodoxa livre da evolução do pensamento do cristianismo ocidental e absorveu o alfabeto e calendário bizantinos. Nesse sentido, todos os aspectos da vida (político, religioso, intelectual e econômico) estariam resguardados e sob controle de departamentos do governo.

As crenças bizantinas eram parte da tradição grega, na qual se considerava que havia uma inabilidade para se distinguir a sociedade do estado, visto que os cidadãos se limitavam àqueles que exerciam a cidadania e os não-cidadãos (servos e escravos).

Conclui-se que a Rússia, portanto, em sua origem, correspondia a uma civilização eslava miscigenada e fundida com as tradições vickings e bizantinas, de religião cristã-ortodoxa, estruturada em um estado totalitário, indivisível, permanente, de estrutura burocrática militarizada, governado por uma entidade “semidivina”, dividido em duas classes completamente separadas, uma elite (aristocracia hierarquizada) e outra de servos e escravos.

CAMINHOS DIFERENTES

Duas fossas abissais separam a história russa da história dos países da Europa Ocidental até 1533, quando Ivan Vasilyevich (Ivan, O terrível) assumiu o poder como o Grande Príncipe de Moscou.

A primeira diferença relaciona-se com a formação dos estados modernos. Enquanto a Rússia trilhava o caminho da formação de um Estado totalitário tão forte e dominador quanto o Império Romano, foi justamente entre 476 e 900 DC que a hegemonia dos Césares ruiu no mundo ocidental, fazendo desaparecer a estrutura estatal em toda a Europa, Oriente Médio e norte da África. Esta era uma prova inconteste de que o Estado era uma criação não-essencial do Homem, enquanto sociedade, leis, propriedade, religiosidade e vida econômica continuaram a existir.

A segunda fossa abissal relacionou-se com o Cristianismo. Na origem, Cristo a estabeleceu como uma religião prodigiosa, de valores, na qual se cria que o homem e o mundo haviam sido feitos à imagem e semelhança de Deus (matéria e espírito), e que, para salvar o homem e dar-lhe o perdão e a vida eterna, o seu próprio filho havia sido enviado à Terra, morrera pelas mãos dos homens e ressuscitara. Dessa forma, pelo BEM e pelos bons exemplos, no Julgamento Final, tudo seria restaurado à sua condição original, tudo seria Deus.

Platão, cerca de 400 anos antes (400 AC), um “racionalista”, “realista” e “idealista”, já havia dividido o mundo em dual, no qual o visível, o físico e o sensível eram parte do mundo natural, enquanto a metafísica, o suprassensível, a alma era o mundo inteligível (inteligência), sobrenatural. Para Platão, a alma consistia de uma substância independente do corpo, eterna, e unia-se a ele de forma temporária e acidental. Era dividida em 3 parte: racional, irascível e apetitiva.

Contudo, entre 340 DC — 450 DC, os Neoplatônicos, dentre os quais Santo Agostinho (354–430 DC), embora monistas — acreditavam em um único deus, começaram a pregar o maniqueísmo, um viés religioso de origem persa que dividia o mundo em BEM e MAL, que entendia que o livre-arbítrio seria a causa do MAL (“os homens, por serem livres, podem praticar o mal”) e que tudo que vinha de Deus era BOM. Ou seja, ficava a cargo do homem tudo de ruim. Assim, por conta da imperfeição do homem e da perfeição de Deus, o homem, por óbvio, deixava de ser a representação de Deus.

As ideias dos Neoplatônicas eram bastante diversas do Cristianismo original, o que abriu sérias disputas dogmáticas e teológicas até 1054 DC, quando ocorreu o Cisma. Na verdade, todas as mudanças da Igreja não foram absorvidas ou discutidas na Rússia, que manteve as tradições grega (e bizantina), sem aceitar as “novas” práticas do ocidente, e com o Cisma, afastou-se ainda mais do cristianismo ocidental. Assim, a Igreja Ortodoxa permaneceu fiel às ideias de obediência às virtudes, salvação do homem pelo “bom trabalho”, supremacia de Deus sobre o Diabo, certeza da fragilidade do corpo e do mundo material diante da glória da alma e de Deus.

ENTRE 1200 E O 1° CZAR

Nos 600 anos seguintes, porém, preocupações maiores iriam afligir a tomada de decisão da elite medieval russa: a leste, a pressão criada por ataques cada vez mais constantes de mongóis (Tártaros) e outros povos nômades da região; a sul, a pressão de grandes civilizações como a chinesa e a indiana; a oeste o avanço da tecnologia ocidental, em muito belicista e colonizadora.

Por volta de 1200 DC, os mongóis (Tártaros) conquistaram a Rússia e transformaram os príncipes de Moscou em representantes do seu governo, responsáveis pela coleta dos impostos em todo o território. Moscou tornou-se a principal cidade e passou também a centro jurídico do futuro império (sobre um pântano, São Petersburgo só seria construída em 1703, por Pedro I).

Em 1380 DC, por meio de uma revolta, os príncipes conseguiram expulsar os mongóis, mas mantiveram o sistema de coleta e a estrutura social de castas. A vitória, a tributação e a estrutura social vigente resultaram em natural expansão do povo menos favorecido para leste, com a burocracia aristocrática perseguindo seus movimentos. A partir de 1500 DC, esse movimento se intensificou quando a pressão militarista europeia e colonizadora se intensificou, alicerçada pela consolidação dos estados modernos (Portugal, França, Inglaterra, Holanda, Espanha, Suécia etc). A Rússia sofreu pressão primeiramente da Suécia e Polônia, depois da França, Inglaterra e Prússia.

Como resultado dessa pressão, a Rússia, dentro de sua estrutura autocrática, passou a aumentar seus investimentos em Defesa, em detrimento dos anseios da população. A organização feudal dos príncipes persistiu, mas o poder econômico e militar foi gradativamente se concentrando nas mãos dos príncipes mais ricos, em um processo similar ao ocorrido com os próprios estados europeus, coincidência espantosa, dada as diferenças culturais.

Em 1533, Ivan Vasilyevich se tornou o Grande Príncipe de Moscou, permanecendo com esse título até 1547 (14 anos). De 1547 a 1584 manteve o governo de forma centralizada como o 1° CZAR.

1° CZAR — IVAN, O TERRÍVEL

Sua origem consanguínea advinha dos bizantinos. Efetuou a passagem da Rússia feudal para a Rússia Império. Seu período foi marcado pelo massacre de Novgorov e incêndio em Moscou pelos Tártaros. Após seu governo, por cerca de 30 anos, a Rússia teve vários governantes por curtos períodos. Miguel I (1613–1645) foi o primeiro Romanov.

FORMAÇÃO DO IMPÉRIO E OUTROS ASPECTOS HISTÓRICOS

PEDRO I, O GRANDE, foi Czar da Rússia de 1682 até o estabelecimento do chamado Império Russo, em 1721, continuando a reinar até a sua morte, em 1725, em São Petersburgo.

Nascido em 1672, entre 1682 e 1689 ele reinou em uma espécie de triunvirato, com seus meios-irmãos Ivan V — coxo e quase cego — e Sofia. Em 1689, então com 17 anos, por conta de uma revolta aparentemente orquestrada por Sofia, com o apoio do exército denominado de Streltsi, pôs Sofia em um convento e afastou de vez o irmão Ivan, mantendo a mãe Natália à frente da política e, assim, protegendo-se, articulando o desenvolvimento do Império.

Pedro casou-se duas vezes. O primeiro casamento ocorreu quando tinha 17 anos e durou 9 anos, sendo encerrado por meio de um divórcio. O 2° casamento ocorreu com Marta Helena Skavronska, Catarina I, de ascendência sueca e religião luterana, com quem teve 12 filhos, dos quais apenas 2 sobreviveram.

Em 1699, com o objetivo de limitar uma possível expansão da Suécia, Pedro I estabeleceu uma aliança secreta com Dinamarca, Polônia e Saxônia, e já no ano seguinte a Suécia foi invadida. A derrota definitiva do rei sueco ocorreu em 1709, com a paz somente selada em 1721, quando a Finlândia se tornou livre do jugo sueco.

Seu governo foi tido como desenvolvimentista. Suas maiores realizações foram o início da construção de São Petersburgo, reforma administrativa, liberdade matrimonial (1702), banimento de duelos, abertura das fronteiras e maior relação com os países europeus, a adoção do calendário Juliano e a simplificação do alfabeto.

Com sua morte, Catarina I governou apenas por 2 anos, morrendo em 1727, quando Pedro II possuía apenas 12 anos. Pedro II subiu ao trono mas morreu em 1730, ainda com 14 anos, passando o trono para a Imperatriz Ana.

A Imperatriz Ana governou de 1730 a 1740, período no qual os aristocratas tentaram de todas as formas reduzir o poder do “Czar” por meio de uma monarquia constitucional. Contudo, em reação, Ana estabeleceu uma polícia política e desdenhou dos militares russos, aproximando-se de uma assessoria estrangeira, o que acabou por envolver a Rússia no processo da sucessão polonesa(1733–35). Em 1736, Ana declarou guerra ao Império Otomano, ocasião na qual o governo germânico interveio pela paz. Ao final do seu governo, a Rússia havia se expandido por quase toda a Ásia Central.

Isabel, filha de Pedro, O Grande, foi a sucessora de Ana e governou de 1741 a 1762. No período, aboliu a pena de morte, criou o Senado e o Conselho Político Supremo, suprimiu aduanas, fundou universidades, academias de arte e aumentou o poder da aristocracia.

Entre 1762 a 1894, os 6 Czares seguintes foram aqueles que permitiram as maiores transformações desenvolvimentistas da Rússia, ora aceleradas, ora freadas pelos movimentos perturbadores da Europa Ocidental:

Pedro III (e Catarina II) — 1762 a 1796 — governo reformista (retrógada na área social)

Paulo I — 1796 a 1801 — repressor*

Alexander I — 1801 a 1825 — desenvolvimentista} Dostoiévski nasce em 1821.

Nicolau I — 1825 a 1855 — repressor} Dostoiévski é preso e vai para a Sibéria.

Alexander II — 1855 a 1881 — desenvolvimentista} Dostoiévski morre em 1881.

Alexander III — 1881 a 1894 — repressor

· Entenda-se repressor como uma forte característica do governo em reação aos movimentos da época, sem necessariamente representar uma “agenda” do Imperador.

Dos 6 períodos, aqueles nos quais Dostoiévski viveu são os que mais serão aprofundados.

DE PEDRO III A PAULO I

Em 1762, Pedro III assumiu o trono, porém por apenas 1 ano, uma vez que sofreu um golpe de estado preconcebido pela própria esposa, Catarina II. Nesse golpe, com 34 anos, foi preso e morto. Em seus 186 dia no poder, Pedro III tirou a Rússia da Guerra dos Sete Anos com a Prússia e redirecionou sua atenção para Áustria e Dinamarca. Ainda, proclamou a liberdade religiosa, combateu a corrupção e aboliu a Polícia Secreta do Estado, órgão repressor instituído desde Pedro I, O Grande. Justamente, por iniciar a reorganização do Exército — concluída por Paulo I, seu sucessor — e tentar alterar o status quo da aristocracia, perdeu apoio e foi traído.

Em que pese Catarina II continuar a política reformista de Pedro III, ampliou os poderes da aristocracia sobre os mujiques e servos, cujos direitos foram devidamente eliminados. Em 1785, por exemplo (talvez seguindo o modelo francês), instituiu a carta Régia da Nobreza, consolidando suas regalias. Tida como promíscua, Catarina II se afastou por completo da Igreja Ortodoxa, senão pelas aparências. Recebeu cristãos e jesuítas como política anti-otomana, mas exerceu forte controle sobre os cristãos polacos. Apesar de prometer tratar o Islã com reconhecimento, proibiu os muçulmanos de possuírem servos e pressionou-os à conversão ao cristianismo ortodoxo (somente em 1773 eles tiveram o direito de construir mesquitas). Em 1785, Catarina II declarou os judeus como estrangeiros, negando-lhes a cidadania. Catarina II morreu em 1796 de derrame cerebral.

Paulo I foi imperador por 5 anos, até 1801, quando foi assassinado. Assumiu o trono após Catarina II — sua mãe — ter feito bastante resistência e censura a seus posicionamentos, o que lhe trouxe problemas desde o início do governo. Já no primeiro ano, retirou poderes da aristocracia, que considerava corrupta, e afastou mais de 300 marechais e generais do poder.

Em seguida, mandou retornar as tropas expansionistas que avançavam em direção ao Irã e voltou sua atenção para os movimentos expansionistas franceses e os efeitos da Revolução Francesa na Europa. Imediatamente efetuou acordos com Inglaterra e Império Otomano, momento em que Napoleão ocupava os países Baixos, Áustria, Suíça, parte da Itália e a Ilha de Malta, em 1798, então pertencente à Rússia. Com a invasão a Malta, declarou guerra à França e iniciou combate ao lado de italianos, suíços, austríacos e ingleses, acumulando derrotas.

Com a tomada de Malta por Lord Nelson, em represália à não devolução da ilha, Paulo I apreendeu navios ingleses em portos russos e aproveitou para efetuar uma aliança com Napoleão, também de forma a retardar uma possível invasão de seu território.

Paulo I foi assassinado em seu quarto em 1801, por uma conspiração estrangeira formada pelo general Levi Von Benningsen (cidadão de Hanover), o general Vladimir Mikhailovich Yashvil (georgiano) e ex-oficiais russos. Com sua morte, assumiu Alexander I, seu filho mais velho, então com 23 anos, presente no castelo onde o pai foi assassinado.

ALEXANDRE I

Alexandre I governou de 1801 a 1825, quando contraiu tifo ou malária e veio a falecer. Nesse período de 24 anos, contudo, a Rússia passou por grandes transformações na população, tanto de caráter externo quanto interno.

Conhecido como desenvolvimentista, efetuou uma profunda reforma educacional, expulsando os professores estrangeiros e voltando a educação para um caminho conservador no qual os fundamentos religiosos tornaram-se parte do Ensino a partir de então. Como resultado dessa reforma, começou a surgir na Rússia uma classe de pessoas mais bem formada e mais ampla que a dos servos (pela 1ª vez na história russa), formatada pelos filhos de padres ortodoxos e por instituições autocráticas, entre elas o próprio Exército. Essa classe terá um papel importantíssimo na história russa daí por diante, justamente por almejar mais progresso e ascensão social, por passar a constituir uma massa que terá, por um lado, acesso à aristocracia, mas que, por outro, se juntará, no período de Nicolau I, a grupos desenvolvimentistas e até revolucionários, sejam ocidentalistas, eslavófilos, niilistas, anarquistas ou outros.

Quanto às relações internacionais, o período de Alexandre I é marcado pela dominação napoleônica na Europa. Desse modo, tal como Paulo I, entre 1804 e 1812, guinou a Rússia em várias direções a fim de afastar os franceses de suas fronteiras: de país neutro, a Rússia tornou-se aliada de Napoleão, depois inimiga.

A ver a cronologia dos acontecimentos, observa-se a expectativa de Alexandre I em tornar a Rússia o império “destinado ao sucesso” (destino manifesto):

1802- Inglaterra não devolve Malta à Rússia e é desfeita a “Segunda Coligação” (contra a França)

1804 — Napoleão se coroa imperador

1805 — a fim de deter a França, Rússia, Inglaterra, Áustria, Nápoles e Suécia formam a Terceira Coligação. Logo após a Batalha de Trafalgar, quando Nelson destrói a força naval francesa e espanhola, as tropas russas são derrotadas dentro da Áustria na batalha de Austerlitz.

1808 — A Rússia ataca a Suécia para obter a Finlândia.

1811- Alexandre I rompe com Napoleão.

1812 — Alexandre I faz trégua com Império Otomano e a Rússia é invadida pelos franceses

1813 — A Rússia expulsa os franceses e é formada a Sexta Coligação. Vitória em Leipzig.

1814 — Alexandre I entra com os aliados em Paris. Napoleão é preso e recolhido à Ilha de Elba.

Em 1815, Alexandre forma com Áustria e Prússia a Santa Aliança com o objetivo de reestabelecer o mapa da Europa pós-napoleônica, conter o “liberalismo” e “secularismo” que julgava ter nascido com a RF. Nesse mesmo ano, com o Congresso de Viena e a derrota de Napoleão na batalha de Waterloo, a Rússia anexa Finlândia, Polônia e Bessarábia ao seu território.

Alexandre I era muito religioso e há relatos de ter abraçado o misticismo após as vitórias militares. Ao retornar da França depois de longo período, a fim de frear movimentos desenvolvimentistas que julgava inadequados, acabou por assumir políticas sociais retrógadas que o afastaram do povo. Ao mesmo tempo, movimentos secretos exigiam a abolição da servidão, enquanto o grupo de nobres que assassinara seu pai tentava reduzir o poder do Czar e encerrar o sistema autocrático de poder. Esses nobres insatisfeitos foram chamados de dezembristas e, cada vez mais radicais, passaram a defender mudanças sociais à lá RF.

A morte repentina de Alexandre I (de tifo ou malária) gerou a revolta dos dezembristas (26/12/1825), tentativa de impedir que Nicolau I assumisse o trono. Os dezembristas (cerca de 3000 oficiais e mais algumas centenas de soldados) exigiam uma monarquia constitucional e a emancipação do campesinato, versão limitadíssima da RF porque não possuía a adesão do povo.

Na verdade, o herdeiro natural de Alexandre I seria o seu filho mais velho, Constantino, então vice-rei na Polônia, que o Exército julgava capaz de efetuar as reformas. Porém, quando ele abriu mão do cargo e Nicolau (irmão) exigiu a coroa, a revolta de parcela do Exército estourou e foi esmagada, iniciando um período de governo repressor.

NICOLAU I

Nicolau I governou de 1825 a 1855. Por sua vez, Dostoiévski nasceu em 1821 e em 1838, com a morte da mãe, aos 17 anos, ingressou na Escola de Engenharia Militar de São Petersburgo; no ano seguinte, 1839, seu pai foi assassinado pelos seus servos. Em 1844, Dostoiévski deixou a carreira militar (já oficial) e se tornou escritor. Em 1948, escreve “Noites Brancas” e em 1949 é preso. Como se pode ver, a adolescência estudantil de Dostoiévski confunde-se com os efeitos das transformações educacionais implementadas por Alexandre I, enquanto o período em que o autor inicia a carreira de escritor e entra no círculo de Petrochev confunde-se com o período em que Nicolau I considera necessário abafar movimentos internos desestabilizadores.

Após abafar a revolta dezembrista, Nicolau I iniciou um período de expansão territorial: em 1830, anexou o Vice-Reino da Polônia e expandiu o território russo também para leste e para o sul. Não gostava da servidão, contudo preservou-a para evitar o acúmulo de desocupados aos já desempregados nas cidades, o que acabou por favorecer a aristocracia e retardar a ação da nobreza revolucionária que então se consolidava.

Em 1855, quando Nicolau I morreu, a Rússia havia entrado um ano antes na Guerra da Crimeia contra a aliança França — Inglaterra — Império Otomano, o que trazia ao governo novamente a percepção de não estar suficientemente armada contra a “agressão” europeia. Seria exatamente esta percepção que lançaria o sucessor, Alexandre II, a buscar reformas que iriam jogar a Rússia nos braços dos revolucionários.

ALEXANDRE II

Adotando grandes e radicais mudanças a fim de obter capacidade de autodefesa, Alexandre II retirou do campo e educou forçadamente os servos e os lançou na cadeia produtiva da indústria, concentrando-os nas maiores cidades. Contudo, a célula de uma classe mais bem educada nascida no governo de Alexandre I e reprimida por Nicolau I, apoiada pela nobreza modernista chamada agora de “Inteligência” (contrária aos aristocratas), já havia aderido às causas ocidentais reformistas e dividia-se agora em ocidentalistas e eslavófilos (nacionalistas). De modo que quando Alexandre II assumiu o governo já havia diversos grupos revolucionários lutando entre si:

Igreja e Exército x Aristocracia x Inteligência (nova nobreza)

Livres x servos x agricultores x proletários x conservadores x desenvolvimentistas

Os ocidentalistas queriam acelerar as reformas na direção da cultura ocidental, pois viam a Rússia como um país atrasado e se miravam no modelo francês de império. Era uma visão anterior, aristocrata, modificada com a reforma educacional promovida por Alexandre I, de cunho nacionalista e contra o estrangeirismo.

Os eslavófilos, produto da modificação, eram nacionalistas e acreditavam que a Rússia era completamente diferente da civilização ocidental. Tinham como modelo a filosofia grega antiga, que contrastava com as mudanças na Europa decorridas na Idade Média. Creditavam que o Ocidente era materialista, hipócrita, racional e artificial, enquanto a Rússia deveria ser mais espiritualizada. Para eles, a “comuna” possuía uma organização própria que satisfazia as necessidades dos colonos, longe da industrialização e do formato econômico típico existente nas demais nações europeias. Defendiam a Igreja Ortodoxa e a Autocracia do Czar, mas pediam reformas em ambas. Muitos eslavófilos deixaram as cidades justamente para levar às vilas a “boa nova de um mundo melhor”, longe do processo de favelização e da fome que tomava os grandes centros. Diferentemente, a corrente de pensamento eslavófila estava baseada na filosofia dos pensadores austríacos e prussianos (futura Alemanha), motivo pelo qual detinha alta carga de ideia de a Rússia ter o “destino manifesto”.

Formada por uma nobreza reformista, criminosa e violenta, a Inteligência não encontrou grupo social de massa no qual pudesse basear a sua plataforma reformista. Daí, de modo a formar uma massa de revolucionários violentos, passou a apoiar o crescimento do Niilismo e do Anarquismo nas camadas mais jovens.

A Aristocracia movia-se para manter o status quo e a servidão, de modo que não apoiava o Czar abertamente, na expectativa de se aliar à Inteligência em algum momento, caso houvesse uma transição pacífica em direção à formação de uma reforma constitucional.

Em 1864, em busca da industrialização forçada, Alexandre II aboliu a servidão, seguindo-se reformas na Justiça, Educação, Leis e nos governos locais (principados). Criou também o recrutamento militar. É justamente nesse momento que a produção agrícola russa decresceu, o país passou a ser financiado pela França e Bélgica e houve o 2° período da grande fome (1857–1870). Somente após 1870 a produção de alimentos voltaria ao equilíbrio.

Alexandre II foi assassinado em 1881, ainda por conspiração da Inteligência, dessa vez apoiada por niilistas e anarquistas.

A RELAÇÃO DO NIILISMO E DO ANARQUISMO COM A MORTE DE ALEXANDRE II

De acordo com o entendimento russo, Niilismo era a rejeição de qualquer convenção em nome do individualismo. Os niilistas não tinham respeito pelas pessoas concretamente, ou pelas personalidades individualizadas, muito menos pela humanidade. Ao retirar qualquer convenção social, eles esperavam que todos passassem a ter a mesma crença no NADA. Caracterizavam-se pelo ateísmo, materialismo, irracionalidade, doutrinação, autoritarismo e violência. Rejeitavam todos os pensamentos, arte, idealismo, convenções sociais, superficialidades, luxo desnecessário; o casamento e a propriedade privada eram ferramentas da opressão sobre a liberdade, as roupas eram a corrupção do corpo; a metafísica, os valores espirituais e universais, a religião de nada valiam: “se o indivíduo não era um materialista, então era um suspeito. Se não era um materialista, era a favor da escravidão política e intelectual do homem.”

O niilismo preparou o terreno para o bolchevismo. Pela experiência russa, a rejeição às convenções serviu mais para destruir o homem russo do que libertá-lo, como era esperado. A destruição das convenções não levou o homem ao estado de anjo, mas de animal, como Dostoiévski muito bem narra em “Os Demônios”, descrição bruta do que se passava na Rússia naquela época.

Paralelamente, o Anarquismo disseminado por Mikhail Bakunin (1814–1876), cuja ideia central era “o chefe de toda escravidão e convenções é necessariamente o Estado” — uma reflexão já ultrapassada no mundo ocidental há mais de 600 anos e que reavivou com a má administração e consequente erupção da Revolução Francesa — tomou corpo na Rússia a partir de 1848, exatamente um país de tradição totalitarista, de economia concentrada e onde a própria Igreja era parte da estrutura estatal. Para Bakunin, a Rússia havia nascido do Mal e devia ser completamente destruída e reconstruída.

Bakunin foi estudante de filosofia e estudou no Exército, tal qual Dostoiévski. Pertencente à chamada nobreza revolucionária (Inteligência), abandonou o Exército em 1834 contrariando o pai (e o Czar Alexandre I) e foi para o exterior, quando conheceu Proudhon e Karl Marx. Em 1844, com a morte do pai, teve todos os bens da família confiscados pelo Czar. Ao apoiar a rebelião checa de 1848, foi preso, deportado e mandado para a Sibéria. Em 1857, conseguiu fugir para o Japão e, via EUA, chegou a Londres. Em 1868, uniu-se à Associação Internacional dos Trabalhadores, por meio da qual expandiu suas ideias para o mundo. A partir de 1872, trabalhou ativamente pela “Revolução Russa”, incitando o assassinato de líderes governamentais.

Na Rússia, o Anarquismo ganhou força logo após as agitações niilistas que Dostoiévski bem retratou. Com niilistas e anarquistas agitando o país e sem ter em quem se apoiar, a Inteligência adotou então um programa de ação direta do tipo mais simples, qual seja, o assassinato — a eliminação dos inimigos. Governos deveriam ser eliminados e as massas estariam livres para a “cooperação social” e o “socialismo agrário” — era no que acreditavam. Foi, portanto, a partir desse conceito que Alexandre II foi assassinado, com o mesmo movimento se espalhando pela Europa: diversos atentados entre 1890 e 1910 ocorreram; Humberto (Itália-1900) e McKinley (EUA-1901) foram também assassinados.

Coincidentemente, Alexandre II foi assassinado no mesmo ano da morte de Dostoiévski e de Machado de Assis (1881).

O FIM DA HISTÓRIA

Alexandre III era o 2° filho de Alexandre II e substituiu o pai, governando por apenas 13 anos (1881–1894), até morrer de nefrite. Buscando estabelecer uma nação homogênea e abafar os movimentos revolucionários, seu governo guinou para a repressão ferrenha, o apoio à Igreja Ortodoxa, o nacionalismo e a obrigatoriedade da língua russa em todo o território, incluindo a Polônia e os territórios alemães em seu poder, à exceção da Finlândia. A partir de 1882, deportou judeus (“O violinista no Telhado”) e restringiu suas profissões, retirando-os do campo. Fortaleceu latifundiários. Por conta de um plano para assassiná-lo, identificou a célula de um grupo que assassinou seu pai e os mandou executar (o irmão de Lênin estava no grupo e foi executado).

No final do seu período (1890), o produto das transformações iniciadas por Alexandre I e II havia sido consolidado: o operariado já era composto de uma expressiva parte da população; a indústria russa atingia o segundo grau de industrialização, capaz de competir com a Europa; o Ensino estava reformado; a favelização e a fome estavam sendo reduzidas; e, apesar da grande dependência financeira externa, o Czar voltava a ser apoiado pela aristocracia como o protagonista do “bom caminho”.

Na contramão do movimento russo, contudo, a recessão econômica na Europa (corte de investimentos estrangeiros no país) acabou por incentivar novo período de repressão política, gerando a grande fome de 1891 e o recrudescimento do movimento revolucionário, propagandeado pela Inteligência, ocidentalistas, niilistas e anarquistas. Aliás, é justamente nesta época que a Inteligência se assume como grupo terrorista e, de forma fanática, inicia um movimento de derrubada da monarquia, com suporte da Europa e Estados-Unidos. De 1885 a 1914, tal como antecipado na literatura de Dostoiévski 50 anos antes, a violência e intolerância tomaram conta de vez dos centros acadêmicos e foram reproduzidas nas massas.

É justamente a partir desse período que a teoria de Karl Marx foi sendo gradualmente alterada por russos no exterior para fomentar a queda da monarquia em definitivo, com o fortalecimento dos bolcheviques (comunistas) e, mais tarde, para permitir a ascensão de Stálin, momento no qual, entre as duas Grande Guerras, o nacionalismo volta a ser mais importante que o proletariado.

Substituto de Alexandre III, NICOLAU II foi o último imperador da Rússia, Rei da Polônia e Grã-Duque da Finlândia. Iniciou seu reinado com a morte do pai (1894) e governou até 15/03/1917, quando se iniciou a revolução russa. Em 17/07/1918 foi executado com toda a família para que não tivesse herdeiros vivos capazes de requerer o trono. O movimento foi articulado pela Inteligência e partidos socialistas e comunistas da Rússia, cujos colaboradores mais conhecidos (Vladimir Ulyanov — Lênin — Partido Operário Social-Democrata Russo, facção Bolchevique, Trotski — sem partido — e Joseph Stálin — Bolchevique) receberam dinheiro e apoio da Alemanha e dos Estados-Unidos.

A Alemanha financiou o retorno de Lênin com o intuito de forçar a revolução, de modo que, por problemas internos, a Rússia saísse da 1ª Grande Guerra e renunciasse a Finlândia, Estônia, Letônia e Lituânia, Polônia, Bielo-Rússia e Ucrânia, além de alguns distritos turcos e georgianos, o que efetivamente ocorreu. Os Estados-Unidos (e Inglaterra) financiaram o retorno de Trotski com o objetivo de desestabilizar a Rússia e, assim, evitar que o país pudesse se unir à Alemanha em algum momento posterior à Guerra (oposição à teoria do Heartland, do inglês Mackinder).

Foram eventos marcantes do período de Nicolau II, consequências do choque entre as ações governamentais e os movimentos revolucionários: 1904/1905, guerra entre Japão e Rússia (Japão vitorioso), seguida da revolta no encouraçado Potenkin, símbolo da instabilidade social russa; 1905 — Domingo Sangrento — massacre de população durante protesto de sindicato às portas do Palácio de Inverno; 1906 a 1908–600 revolucionários executados pelo governo e 35.000 exilados na Sibéria, enquanto 2.300 civis executados e 5.140 oficiais assassinados por revolucionários.

Em meados de 1916, a Rússia encontrava-se no extremismo da dualidade, de 2 formas: qualquer parte da experiência humana à qual era dada fidelidade tornara-se “toda a verdade”, exigindo fidelidade total das pessoas, sendo tudo à volta “engano do mal” (visão materialista extremista); todo ser humano deveria aceitar essa “verdade”, caso contrário tornava-se inimigo, “servo do anticristo” (visão religiosa extremista). Quem apoiava o Czar era chamado de autocrata e quem não apoiava era chamado de anarquista. Aqueles que adotaram o materialismo tinham de ser absolutamente niilistas, abolindo todas as convenções, ritos etc, manter-se ateu ou afastar-se completamente da convivência, recolhendo-se ao clero. Para esse grupo, os corruptos, supersticiosos, defensores do pensamento mágico (como Rasputin) e até os suicidas eram absolvidos e aclamados pelo povo, porque o mundo após a morte já não existia, o mundo material era justificável. Para o outro grupo, todos os problemas terrenos da vida humana deveriam ser eliminados, tais como o pecado, o mal, a racionalidade, pois eram derivações do pensamento ocidental impuro. Para alguns autores (Tolstoi), o sexo correspondia à luxúria, para outros, a Arte, a estrutura familiar, o casamento e a comunidade eram formas de dominação do homem sobre o homem. Os radicais religiosos consideravam que a prosperidade e a felicidade eram impossíveis e inalcançáveis pelo homem russo, senão a aceitação da estratificação social em castas e subgrupos, uma desculpa para admirar o sofrimento como cura da alma e salvação eterna. Tudo se misturava em um caldeirão de teorias filosóficas desconexas e ideologias econômicas (por si mesmas impossíveis de alcançar).

Interessante mencionar o poder da propaganda europeia niilista sobre o todo o mundo à época, revolucionando até mesmo a Literatura, com o Realismo e o Naturalismo. No caso do povo russo, justamente aquela camada de maior nível educacional, ao tentar se livrar do pensamento ocidental, que considerava negativo, cada vez mais alicerçou sua visão de mundo no pensamento maniqueísta neoplatônico, justamente àquilo do qual queria se livrar.

É tratando do momento histórico russo que, como brasileiro, irei oferecer possibilidades e opiniões pessoais (agradáveis e desagradáveis) sobre a obra de Dostoiévski.

O PRIMEIRO DEGRAU DA ESCADA

Para subirmos o primeiro degrau com Dostoiévski é preciso apresentar fatos do início da sua vida que podem ter influenciado enormemente seus quatro primeiros livros. Como já mencionado, Dostoiévski nasceu em Moscou em 1821. Em 1838, fato muito marcante para o rapaz, a mãe morreu de tuberculose. Segue-se o seu ingresso na Academia Militar de Engenharia — São Petersburgo, por orientação do pai que, no ano seguinte (1840), é assassinado pelos servos na propriedade rural da família. Na Academia, aproveitando-se das reformas educacionais promovidas pelo Czar Alexandre I, aprofundou conhecimentos da história e literatura russa e francesa e teve contato com a estrutura fortemente hierarquizada e competitiva do Exército, imitada pela estrutura estatal das demais repartições civis, nas quais o acesso dependia exclusivamente da política. Em 1844, mantendo contato com seu irmão por cartas, Dostoiévski decide deixar o Exército e, com 25 anos, sobe o primeiro degrau de sua carreira de escritor lançando o livro “Gente Pobre”, quando recebe efusivos cumprimentos pela obra.

Por óbvio, os elogios não se relacionavam com uma escrita impecável ou uma história espetacular, mas sim pela escolha do tema, sua relação com a época, com a ideia de usar o linguajar natural dos mais humildes na narrativa e, principalmente, pela intenção do autor em mergulhar no mundo realista dos “homens sem importância”. Diante das transformações sociais deflagradas pela Revolução Francesa e o interesse de uma parte da sociedade russa por reformas, a crítica apostou em Dostoiévski justamente por acreditar que ele poderia ser o mais novo representante da literatura de protesto. Nesse sentido, uma obra que usava o Realismo (ou o Naturalismo) poderia muito bem apresentar a condição opressora na qual os mais pobres viviam. Em últimos termos, Dostoiévski poderia ser útil ao movimento revolucionário.

Para chegar a esta conclusão, fundamento-me em passagem do próprio livro “Gente Pobre”: ao seu final, de forma bastante humilde, Dostoiévski afirma “que está começando a formar um estilo”. Pode ser que essa tenha sido a melhor forma que encontrou de se desculpar com o público quanto à linguagem inesperadamente popular usada pelos personagens; ou talvez pela forma romântica como conduziu uma narrativa de “traição” tipicamente realista; ou pela forma inesperadamente epistolar como desenvolveu a história. De qualquer modo, é fato, nem Dostoiévski, à época, reconhecia ter um estilo próprio. O segundo fato: lançado exatamente no mesmo ano que “Gente Pobre”, o seu segundo livro, “O Duplo[1]”, em todos os aspetos literários muito melhor do que o primeiro, embora também tratasse de outro “homem sem importância”, por não possuir o mesmo apelo social — o enlouquecimento de um homem, foi negativamente recebido pela crítica: totalmente em prosa, narrado em primeira e terceira pessoas, completamente diferente da primeira obra, “era muito psicológico e tirava o foco da questão social”.

Ainda, é fato que, em “Gente Pobre”, Dostoiévski parece estar no meio do caminho entre o Romantismo e o Realismo Europeu. Falo de Makar (o “Feliz”, o “Alegre”), o protagonista, uma pessoa essencialmente virtuosa, que sofre com as limitações do mundo material e tangível, mas vai alcançar uma espécie de redenção neoplatônica (à lá Santo Agostinho) pela fé e esperança, ao perdoar quem considerava ser a sua “traidora”. Muitos leitores defendem que Dostoiévski precisou ser preso, condenado à morte e absolvido da pena capital para chegar, em “Crime e Castigo”, à esta receita espiritual. Contudo, esta forma de ver as coisas já está em seu primeiro livro.

Por outro lado, seja pela escolha dos nomes de Varvara (“bárbara, traidora, estrangeira”) e Rataziáiev (“Ratazana — palavra repetida várias vezes em trechos onde o personagem era citado”), seja quando relata a miséria na qual os personagens vivem, ou quando trata da compra de mulheres adolescentes por homens muito mais velhos, ou da prostituição e do incesto, da condição das pensões populares, do custo de vida e da relação dos inquilinos com os senhorios, da decadência financeira e social das viúvas desamparadas, Dostoiévski está, a partir de uma história romântica, em essência, mergulhando no Realismo europeu de cabeça.

“Gente Pobre” é uma história que também trata da solidão, talvez a solidão com a qual Dostoiévski conviveu desde a sua entrada na Academia e que o acompanhou para além da sua baixa do Exército, como se ela fosse uma espécie de sombra.

Resta falar da preocupação com “o pão” (a sobrevivência) e a discussão em torno do materialismo. Desta feita, é certo que a transição de Dostoiévski como oficial do Exército para a carreira de escritor não deve ter sido fácil, trouxe-lhe a preocupação da sobrevivência. Se antes trocava o risco da morte na guerra por um soldo na paz, como escritor, haveria de ganhar o pão todos os dias e conviver, dia após dia, com a fragilidade humana diante das incertezas.

Eis aí um primeiro degrau escorregadio: se aceitasse a boa crítica e se contentasse com ela teria decretado a sua própria morte como escritor. Não tropeçou, não caiu, foi adiante, em busca da sobrevivência e do próprio estilo, ainda em formação.

O SEGUNDO DEGRAU — O ESPELHO PSICOLÓGICO: o homem sem importância x o homem inútil

Como mencionado acima, ainda no ano de 1848, pouco tempo depois de “Gente Pobre”, Dostoiévski lançou seu segundo livro, intitulado “O Duplo”, uma grande decepção para a mesma crítica que o elegera meses antes como “a maior revelação literária russa dos últimos tempos”.

Em que pese o livro tratar novamente da vida de “um homem sem importância”, dessa vez o autor decidira por uma trama que tinha a “loucura” e a “autoridade da Ciência” — temas então atualíssimos[2] — como pontos focais da discussão; contudo, certamente, assuntos que não poderiam ser usados pelos críticos que fomentavam as ideias progressistas irrigadas na Rússia pelo Ocidente àquele momento. Era justamente o contrário o que se desejava propagar.

Embora a ideia da imagem espelhada de um homem — fisicamente igual mas psicologicamente oposta ao real — não ser, em si, uma novidade no século XIX, mas tão só um conceito rejuvenescido pelos avanços filosóficos e matemáticos da Ciência Moderna, o livro fascina porque Dostoiévski aproveita-se da estratificação social e da organização extremamente burocrática da Rússia para criar o ambiente adequado para o enlouquecimento do homem comum da cidade. Assim, não é do homem pobre que Dostoiévski está exatamente falando, mas dos funcionários públicos (e pequenos burgueses) que sonham com uma ascensão social, mas não têm liberdade suficiente para isso.

Se, por um lado, o autor informa que não é possível ascender profissionalmente ou financeiramente por méritos próprios e que toda a geração do Sr. Golyadkin (nome que significaria “completamente nu” ou, se derivado de Golias, “derrotado”) está condenada a esta realidade, por outro, ele alerta que a Educação é o caminho para a liberdade que tanto a sociedade anseia.

Em primeiro lugar, não há como não pensar que o enredo desse livro em muito se relaciona com a vida de Dostoiévski no Exército, desde a sua entrada — a pedido do pai — até o seu pedido de baixa: no ambiente castrense, a competição, a vaidade, a inveja e as relações interpessoais trabalham para as seguidas promoções. Em segundo lugar, este é justamente o sentimento dúbio que Dostoiévski parece possuir pelo governo: se critica a estrutura burocrática fortemente enraizada e enlouquecedora da sociedade russa, encerra o livro reafirmando a decisão acertada de Alexandre I de reformar a Educação, caminho visto por ele para se alcançar a autonomia humana (liberdade) em uma sociedade industrializada.

“Mas quanto a morar numa cabana, minha senhora, sabe como é, em nossa época não dá. Assim é a coisa! Sem uma boa educação em nosso século industrial, minha senhora, não dá (…)”

Interessante comentar também que, além do “homem russo virtuoso”, Dostoiévski não abandonou os temas “solidão” e “traição” em praticamente nenhuma de suas obras. Assim, escrevente competente e virtuoso, Golyádkin — o protagonista — possui a ambição de melhorar de vida licitamente, é educado e respeitoso. Daí, se a Ciência não é capaz de reconhecer que o desenvolvimento de grandes cidades industrializadas cria um ambiente perverso e enlouquecedor, a solidão, por sua vez, é o sintoma que, por meio do médico, a mesma Ciência usa para diagnosticar o paciente cindido, doente, desequilibrado, louco: o personagem cinde justamente quando a esperança o abandona e ele assume que foi derrotado; o seu duplo, o sonho de si como um vencedor é algo que Golyádkin “primeiro” jamais conseguirá alcançar.

Extrema coerência com a referência literária, se em “Gente Pobre” Dostoiévski cita abertamente Puchkin, em “O Duplo” ele cita os franceses Flaubert e Balzac.

Em “O Duplo”, pela primeira vez, há a aversão descarada de Dostoiévski ao Materialismo e à Ciência, ou seja, o seu desprezo e aversão pela visão neoplatônica de mundo, que já reverberava no Ocidente. Diferentemente de “Gente Pobre”, em “O Duplo” não há a redenção do protagonista. Ao contrário, originalmente virtuoso, o protagonista se perde na ambição material e na inveja, passando a não mais suportar a sua condição de funcionário público modesto. Nesse sentido, talvez, para Dostoiévski, a vida no campo, diferentemente da vida na metrópole industrializada, não pressionasse o indivíduo à ambição e à inveja. E o seu médico, que ao início da trama faz o papel de confidente e psicólogo, ao final, não deixa de ser a representação da traição, do próprio “Diabo”, ou seja, daquele que, “em nome da Ciência”, atestará a sua loucura e o condenará ao “cativeiro” (isolamento social).

“Freud associa a criação do duplo à onipotência narcísica infantil. Esta criação, contudo, tende a desvanecer quando o estabelecimento de uma instância crítica surge e, no próprio ato de duplicar o eu, limita-o” — assim apresentam Amadeu Weinmman e Verônica Ezequiel (2015).

Não à toa, para Dostoiévski, quando a esperança deixa o corpo do protagonista de vez, o duplo torna-se a própria representação da sua morte subjetiva.

O TERCEIRO DEGRAU — AS IDEIAS FIXAS

Nos dois degraus anteriores, identificamos alguns temas que, tal ideias fixas, preencheram os dois primeiros livros de Dostoiévski. Nos próximos degraus, iremos tentar alargar a abrangência desses temas nas demais obras do autor, quais sejam: a passagem do Romantismo ao Realismo; a perspectiva histórica; as mulheres — a senhoria, a mulher virtuosa, a desesperada, outras mulheres; outros tipos de traição (com ou sem beijo); as alegorias — o destino manifesto, a política, a violência, a ética e a moral; a redenção e o paradoxo.

O QUARTO DEGRAU — O ROMANTISMO E O REALISMO

Não é possível dizer que Dostoiévski avançou do Romantismo ao Realismo de forma intencional, conforme ocorreu com outros autores famosos apenas para seguir um movimento literário.

Como obras que poderiam ser tratadas como românticas, julgo estarem “Gente Pobre, “O Duplo” e “Noites Brancas”. Em “Gente Pobre” Dostoiévski “se desculpa” pelo estilo que usou, enquanto em “O Duplo” o autor disserta sobre as diferenças dos “ismos” ao longo do Capítulo IV, quando descreve uma festa na casa do conselheiro de Estado Berindêiev — outrora benfeitor de Golyádkin.

De início, o narrador (em terceira pessoa) apresenta o anfitrião e sua filha como entidades, seres quase mágicos, descreve pormenorizadamente o ambiente de luxo e perfeição, fazendo referências à cultura grega e francesa e enaltecendo a harmonia e os valores da elite social russa. Naquele ambiente,

“a virtude triunfa sobre a malícia, o livre-pensar, o vício, a inveja (…)”.

A seguir, aflora o termo típico das histórias românticas:

“Pois é nessa situação, senhores, que neste momento encontramos o herói de nossa história absolutamente verídica[3](…)

A partir de então, será descrito todo o episódio que encherá o Sr. Golyádkin de vergonha e promoverá a sua cisão do personagem em dois, o homem real e o seu duplo, o segundo, o ideal (que por ser ideal, torna-se impossível de existir). Eis o duro realismo!

Seria, portanto, este o mundo entre os dois movimentos literários?

Em “Noites Brancas”, em “O idiota” e, novamente, ao final da sua carreira, Dostoiévksi utilizará a palavra “herói” para tratar da narrativa de homens virtuosos. Em “Os Irmãos Karamazov”, Aliosha — o filho mais novo do velho Karamazov — será “nosso herói”, um rapaz que tem uma epifania, uma “iluminação”, no momento de maior tristeza e introspecção da narrativa. Estaríamos diante de narrativas realistas com protagonistas “românticos”?

O QUINTO DEGRAU — A PERSPECTIVA HISTÓRICA

Se as duas primeiras obras do autor tratam dos microcosmos distintos de dois homens sem importância, em “A Senhoria” e “Noites Brancas” o autor descreve as entranhas da sociedade russa com a impressionante meticulosidade de quem olha com uma lupa um escaravelho alfinetado, digo, analisa-a por todos os seus aspectos. Dostroiévski trata dos preconceitos, das diferentes castas, das rixas étnicas, tudo isso amalgamado por uma perspectiva histórica tão sutil que somente com a introdução anteriormente lida podemos identificar algumas dessas questões.

Múrin, por exemplo, um assassino que mesmo já velho amedronta e faz prevalecer as suas vontades sobre todos os outros personagens é um tártaro violento, representação dos mongóis que em algum momento da história tomaram Moscou e dominaram o coração da Rússia. Sua selvageria não só se relaciona com o provável assassinato do padrasto (eslovaco) e da mãe de Katerina, mas também com o homicídio do seu namorado. Não menos pavoroso é o incesto que parece existir com a própria Katerina, visto que a mãe da menina sequestrada possuía uma estranha e antiga relação com Múrin, além de se comunicar com ele em tártaro. Em Múrin — um homem cujo poder advém das suas vontades, tal qual seria o “diabo” — está a gestação do personagem Stavróguin, de “Os Demônios”, personificação do homem amoral que, segundo Dostoiévski, foi construído dentro das universidades estrangeiras e russas por professores niilistas e cientificistas ao longo de quatro décadas. Indo um pouco mais adiante, Múrin também não deixa de ser uma representação malévola do “Pai”, do “Czar”, tema recorrente do autor e imortalizado “na sua última obra (prima), “Os Irmãos Karamázov”.

Katerina (“Pura, casta”), por sua vez, nome de grande sonoridade histórica para os russos, é a “senhoria”, decidida, aquela que determina a Múrin receber Ordinóv como locatário de um quarto. Na verdade, aparentemente poderosa, Katerina não possui a verdadeira capacidade de se autogovernar, escolher o seu destino, porque é vigiada e mantida cativa dentro de sua própria casa por Múrin, algo quase impossível de não se relacionar com a condição das Czarinas Catarina I e II, ambas estrangeiras em solo russo e conduzidas por assessores por todo o período em que governaram.

Quanto a Ordínov (“Ordinário”), Dostoiévski incumbiu-o de um outro papel: longe do homem “sem importância” das outras duas obras, o rapaz é nada mais nada menos do que a personificação do estudante universitário que esteve preso aos estudos por muitos anos em um quartinho e de repente foi lançado ao mundo por um despejo forçado. Primeiramente, toma-lhe o gosto a realidade que enxerga além das quatro paredes de seu quarto, a liberdade que vislumbra ao ter de alugar um novo quarto após a partida da antiga senhoria (a velha) e, finalmente, a descoberta do amor por Katerina, “a nova senhoria”, que lhe acende o corpo e o desejo de ser alguém muito além do que é. Talvez imagem de si mesmo quando deixou a vida militar, a história do personagem acaba por se assemelhar também ao do “Mito da Caverna” (Platão), porque trata da experiência da descoberta de quem está vivendo na reclusão. Nesse caso, contudo, o personagem cheio de estudo universitário é, na verdade, um homem ordinário — muito diferente do homem sem importância dos livros anteriores — porque está repleto das ideias niilistas que lhe negam a ação. Ordínov é, portanto, um homem fraco, um homem supérfluo, o resultado psíquico de um homem que, se por um lado deseja, por outro, sua educação superior e a baixíssima autoestima niilista não o deixam lutar pelo que deseja. Levando-se em conta a trama de “Os Demônios”, talvez, pela observação atenta da história, Ordínov seja a representação da primeira geração de estudantes russos dos anos 30/40 que foi formada pela revolução educacional disparada por Alexandre I, quando a influência niilista estrangeira ainda não era suficientemente forte para produzir revolucionários absolutamente animalescos, ou seja, criar uma geração verdadeiramente amoral, selvagem, tal qual é Múrin, o tártaro.

Não se pode deixar de citar que, quando de seu aparecimento no romance, por conta do “conhecimento teórico” que dispõe, Ordínov desperta grande interesse de Katerina e de seu amigo Iaroslav, como se dele pudesse sair a força intelectual capaz de iluminar a Rússia de esperança e consciência. Contudo, a capacidade sedutora de Ordínov tem o voo de galinha gorda, logo aterriza, tornando-se desprezo, tal como é o desprezo por aqueles que sonham mas estão desconectados das suas vontades. Até mesmo na questão sexual, Ordínov é também platônico.

No seu quarto livro, “Noites Brancas”, novamente a perspectiva histórica está presente, simbolizada pela relação entre os três personagens principais. Neste livro, há também uma senhoria na trama, dessa vez na forma de uma senhora bem idosa que aluga um quarto a um suposto estrangeiro. A senhoria foi rica, fala francês fluentemente, vive das boas lembranças de outrora. Cega, mantém sua neta Nastiénka (“Renascida”, “Ressuscitada”) praticamente presa à barra de sua saia, forma de controlá-la, de evitar que a menina tivesse uma educação equivocada, um futuro indigno. A senhoria parece ser a imagem e semelhança da velha oligarquia medieval russa que, gradativamente, foi perdendo seu poder diante dos movimentos subterrâneos que dominavam o país. Não por acaso, Nastiénka, uma garota aparentemente ingênua e cujo futuro é incerto, se apaixona pelo estrangeiro, primeiro homem com quem desenvolve uma relação, muito em virtude da sua condição de inquilino, talvez da sua condição de “salvador da pátria”.

Curiosamente, por sua vez, definido como um idealista e sonhador, o rapaz que acabará por rivalizar com o inquilino o amor de Nastiénka, propositalmente, não recebeu um nome, mas foi apenas descrito como um homem de São Petersburgo, ali criado, completamente conhecedor do local, da cidade, de todos os hábitos do povo. É um homem do povo, digo, alegoria do próprio povo. Apresenta-se vagando pela cidade um tanto melancólico, descrevendo os prédios, as ruas, os rios e pontes que vai atravessando até avistar Nastiénka, quem ele encontra chorando em uma ponte, desesperada a ponto de se suicidar.

De modo análogo ao que encontramos em “A Senhoria”, os sentimentos do ex-tenente do Exército (até então defensor do Czar) se misturam àqueles que o impingem à sua nova realidade: o pão tem de ser ganho todos os dias. A saudade dos colegas do Exército está metaforicamente na descrição dos prédios de São Petersburgo, personificadas que são desde a descrição das cores das fachadas (os uniformes) até as reformas que sofrem (as promoções), momento em que o autor utiliza termos tipicamente militares para descrevê-las. Por outro lado, a pintura de uma simples casa na cor amarela (cor do Czarismo) suscita, também metaforicamente, o seu descontentamento com o governo por vê-lo tão afastado do povo.

Engenhosamente, este é o primeiro romance do autor no qual a mulher torna-se protagonista e detentora de um poder ilimitado sobre o homem. Não à toa, Dostoiévski interrompe a narrativa no terceiro capítulo para descrever em pormenores quem é Nastiénka, aquela que vai renascer. Neste trecho a história ganha o contorno de história fantástica, na qual, pela primeira vez, largada nas entrelinhas, apresenta-se a ideia do “destino manifesto[4]” russo.

Apesar de “Noites Brancas” aparentar ser tão somente um romance que se estabelece entre duas pessoas que se unem pela baixíssima autoestima que possuem, a perspectiva histórica a transforma em uma espécie de interpretação alegórica histórica, digo, uma perfeita representação do que se passava com a Rússia no campo político naquele momento. Na minha humilde opinião, Dostoiévski referia-se à estrutura ultrapassada de castas existente na sociedade russa, ao sentimento de atraso social (sentimento de “vira-latas”) existente no povo das cidades, às guerras e incertezas que tomavam o pensamento da população, da miséria, do risco da fome, da perplexidade diante do êxodo rural e da industrialização forçada que havia sido iniciada por Alexandre I — isto tudo simbolizado pelas estradas de ferro que começavam a cortar o país. Tratava, finalmente, da dívida externa contraída aos estrangeiros, especialmente à França.

Nastiénka era a própria Rússia jovem, a Rússia capaz de renascer, “de se casar com um estrangeiro (chinês ou inglês?), de se modernizar, de abraçar todos os russos com felicidade, enquanto a velha e falida Rússia estava simbolizada pela avó da garota, presa à França e aos costumes antigos.

Interessante mencionar que em obras posteriores, conforme o autor vai se conscientizando cada vez mais dos problemas russos, passará a tratar do “destino manifesto” como uma aspiração do povo russo, muito mais do que sua. Em “Os Demônios”, por exemplo, essa ideia, abandonada pelo autor, será tratada como a aspiração de um professor derrotado pelo niilismo e pela doença. Em “Os Irmãos Karamázov”, sua última obra, Dostoiévski já estará completamente afastado das questões macropolíticas e terá se voltado completamente para as questões micropolíticas e metafísicas, nas quais o “homem-alma” tornara-se o seu grande objeto de estudo essencial.

O SEXTO DEGRAU — A SENHORIA, A MULHER VIRTUOSA, A MULHER À BEIRA DE UM ATAQUE DE NERVOS E OUTRAS MULHERES

Embora Dostoiévski descreva o universo russo como era, extremamente machista, em suas obras, foi gradativamente percebendo a influência que as mulheres exerciam sobre os homens e lhes dando maior protagonismo, até torná-las definitivamente o ponto nefrálgico de muitas de suas obras.

Nos triângulos amorosos dos seus primeiros romances, as mulheres se destacam pelo jogo de sedução, mas a condição de inferioridade social e legal as mantém em uma condição inferior da qual é impossível se desvencilharem. Dostoiévski não produz nenhuma Anna Karenina (Tolstói), personagem capaz de romper com a sociedade ao assumir plenamente seu desejo de amor, ao ponto de provocar um escândalo social na classe mais abastada da Rússia. As mulheres de Dostoiévski estão em um outro degrau, são mulheres diferentemente espetaculares, mulheres escravizadas, prostituídas, contidas pela educação, muitas à beira de um ataque de nervos diante dos abusos que sofreram e das condições vexatórias pelas quais passaram, quase todas enquanto vivendo ao lado de homens sempre muito violentos e moralmente destruídos.

Em “Gente Pobre”, “O Duplo” e “Noites Brancas”, a única possibilidade de ascensão social da mulher é pelo casamento, seja na classe mais abastada seja na mais pobre. A segunda opção é irremediavelmente a prostituição. Além disso, nos três casos, ouso dizer que a traição da mulher mais se relaciona com o ponto de vista dos três protagonistas do que com a realidade: em “Gente Pobre”, a traição é bíblica; em “O Duplo”, em que pese o devaneio de Golyádkin, está justificada na diferença entre castas; em “Noites Brancas”, no devaneio romântico (amor platônico).

Em “Os Demônios”, Dostoiévski mostra o poder de sedução que o estudante revolucionário e psicopata (o homem diabólico formado pelo ateísmo e pelo cientificismo — “diabo”) possui sobre as mulheres, todas elas. Essa sedução é, inclusive, motor do processo de fecundação e gestação dos discípulos de uma sociedade absolutamente doente pela ausência de Deus, onde o niilismo a domina e cega. Então, se há alguma liberdade para as mulheres nesta obra, ela advém do poder corruptor do líder social, que as vê como meros objetos de reprodução de uma nova geração mais violenta que a anterior.

“O Eterno Marido”, conto produzido na fase mais madura do autor, em que pese as mulheres traírem o marido (viúvo) escancaradamente, é o protagonista quem as escolhe — todas interioranas — e delas abusa psicologicamente, reproduzindo a famosa frase: “Te traí, mas te perdoo!”, coisa muito semelhante a Dom Casmurro, entre Bentinho e Capitu.

Nesse contexto, dois livros e três personagens femininas espetaculares se destacam porque comprovam a evolução das personagens femininas do autor: em “O Idiota”, Nastácia Filíppovna (Nastácia significa “a renascida”, “a sábia”, enquanto Filípovna refere-se a “quem gosta da guerra, combatente”), com sua história dramática, conduz toda a primeira parte do livro de uma forma alucinante, no que poderia ser chamado de “o primeiro ato de uma peça de teatro irretocável”. Ela é a representação da mulher que, mesmo abusada desde criança por um homem bem mais velho (sugar dad), passa a ter consciência desse abuso e do feitiço de dominação que pode exercer sobre os homens. Desprezada, torna-se, portanto, ao mesmo tempo, uma delatora da sua condição, quer vingança, almeja o suicídio.

Em minha trilogia Capitão Complexos / Capitão Com sexos / Capitão Conexos, Yoni é a personagem que representa esse poder feminino de dominação, personagem cindida como tantos personagens de Dostoiévski porque, trazida ao final do século XX, não suporta a condição de liberdade sexual que lhe está disponível. Daí, querer também a vingança, nesse caso, atribuindo aos outros as consequências das suas próprias escolhas.

Em “Irmãos Karamazov”, Agrafena Alexândrovna — Grúchenka (significado “procura, busca”) é a mulher que seduz pai e filho. Passional, abandonada pelo seu grande amor, um polaco sem escrúpulos, seu maior desejo é trazer infelicidade àqueles que com ela dividem a cama, tirar-lhes um pouco da riqueza, vingar-se do abandono de quem quer que seja.

“Mas eu vou a casa de Gruchenka deixar minha pele”

Já Lisa (diminutivo de Elizabete, que significa “consagrada a Deus” é a “namorada” de Aliosha, uma cadeirante, que, ao despertar para o amor verdadeiro, está disposta a ser a representação da sua própria cura, do milagre divino. É justamente neste último livro que Dostoiévski informa que a participação da mulher na sociedade será cada vez maior e irreversível. Dostoiévski sugere que Lisa alcançaria a felicidade ao lado de Aliósha[5].

Não à toa, dei nome a este capítulo estabelecendo uma linha temporal que se inicia com “A senhoria”, personagem recorrente até, ao menos, “Crime e Castigo”, passa pelas mulheres conscientes e à beira de um ataque de nervos, ultrapassa o diedro das mulheres inconscientes e mergulhadas no ambiente revolucionário e violento, e chega ao seu ponto final em “Lisa”, a mulher virtuosa e capaz de se unir milagrosamente a um errante (Aliósha) simplesmente por reconhecer nele a existência das três vertentes do “Amor verdadeiro”: amor Eros, amor Philia e amor Ágape. É Lisa a mulher sensata, inteligente, quem decide seu futuro com consciência.

O SETIMO DEGRAU — A TRAIÇÃO COM OU SEM BEIJO

Se vimos que os triângulos amorosos são estratagemas e fontes de calor dos livros de Dostoiévski, as traições de toda forma, os abusos sexuais, as perversões são também muito exploradas. Contudo, é em “O Eterno Marido” que Dostoiévski discute a relação inequívoca e indecente entre o traído e o traidor, caracterizada por um beijo entre os dois homens que, um dia, disputaram a mesma mulher. Apesar de nenhum dos dois ter sido verdadeiramente apaixonado pela personagem feminina, tem-se a sensação de que o beijo entre os dois tem o peso do beijo de Judas em Cristo, ou seja, é um símbolo, um símbolo da corrupção humana.

Interessante mencionar que neste conto não há uma relação entre “bom” e “mau” (pós-platônica), porque os dois homens, se possuem algo de bom, também são dois patifes, cada qual com suas questões: adoecem as mulheres com quem vivem e torturaram psicologicamente uma adolescente até a sua morte, entre outros atos ruins e bons. Talvez, na visão de Freud, estariam no limiar de uma relação homoafetiva, pois parecem odiar as mulheres.

O OITAVO DEGRAU — AS ALEGORIAS

Ao longo do texto já abordamos diversas alegorias, isto é, a reprodução de uma classe, de um grupo, de uma parte da sociedade por um único personagem, ou a descrição de um momento histórico do país levando-se em conta o próprio desenvolvimento do texto. Dostoiévski usava os jornais como fonte para seus temas, de modo que se torna ainda mais fácil compreender a relação entre seus livros e a realidade russa. Assim também ocorreu em obras de outros escritores famosos, dentre os quais cito Machado de Assis: as obras “Memórias Póstumas de Brás Cubas, Quincas Borba, Esaú e Jacó e Memorial de Aires são impressionantemente alegóricas, de tal modo que retratos do Brasil são descritos em detalhes em todas elas, as duas últimas, chanceladas por quem mais poderia estar a par da história real, um conselheiro do MRE, o Conselheiro Aires.

Neste diapasão, minha trilogia “Capitão Complexos”, “Capitão Com Sexos” e “Capitão Conexos” também aponta para 30 anos de história do Brasil, na qual as mudanças sociais e a representatividade das classes sociais, da mulher, e temas progressistas foram tratados, em um ambiente, por definição, irônico e alegórico, “Dom Quixotesco” por excelência.

Voltando a Dostoiévski, “O Duplo”, “Noites Brancas”, “Os Demônios”, “Crime e Castigo”, “O Idiota” e “Os Irmãos Karamazov” são, na minha humilde opinião, os mais alegóricos. Os quatro primeiros fazem com que mergulhemos em diferentes vertentes da história russa, onde protagonistas representam castas, classes de trabalhadores (rurais, pequenos burgueses, alta sociedade), representam o Czar, a oligarquia, o povo, as linhas de pensamento tratadas no subsolo, nas universidades, no exterior. Líderes revolucionários em formação etc e jovens assumem-se os combatentes que irão mudar o mundo pela força. Não à toa, Dostoiévski nos irá mostrar a Revolução Russa e a degeneração política até as duas GG cerca de 50 anos antes de elas acontecerem, porque a violência está sendo, como um belo ovo, chocada em sua época.

Não é nada diferente do que se está incubando nas universidades do Brasil no século XXI, com a incitação dos estudantes com ideias marxistas ultrapassadas, cujo maior objetivo é garantir à chamada “elite intelectual universitária” um lugar ao sol no ambiente governamental que a sustenta financeiramente. Eis o que é o progressismo atual, senão uma forma de minimização e estratificação da produção (mote capitalista), apoiada pela concentração da distribuição (mote socialista), modelo do suicídio econômico.

Por outro lado, por meio dos seus últimos três livros alegóricos acima citados — com inquestionável senso de religiosidade e crítica ao uso de universitários para incubar ideias revolucionárias — Dostoiévski criticou a violência social, a relativização da verdade, o Materialismo, e tentou nos mostrar um caminho mais digno, do amor e da redenção.

O PARADOXO ESTÁ NO CÉU — UMA NARRATIVA DO CORAÇÃO

Tenho a convicção de que muitos admiradores das obras de Dostoiévski têm dificuldade de compreender o que está nas entrelinhas e, portanto, não entendem os finais das histórias do autor. Dei nome a isso de paradoxo. Dou 2 exemplos: durante um estudo do livro “O Idiota”, uma estudante universitária brasileira iluminada das ideias marxistas que havia se inscrito no curso que fazíamos, por acreditar que se tratava de um texto revolucionário, externou-nos, quando próximo das discussões finais do livro, que “não estava entendo nada!” Em outra situação, assisti uma peça de teatro no Rio de Janeiro na qual se igualava a condição pré-industrial russa do século XIX com a condição dos moradores de uma comunidade em São Paulo que morava, em pleno século XXI, embaixo de uma ponte, comunidade esta que acabou virando cinzas em um incêndio de poucas horas. A peça clamava aos céus por revolução.

É sutil o paradoxo. A dificuldade de compreendê-lo advém da crença de que, para Dostoiévski, o homem é feito de corpo e alma e, portanto, se único e indivisível, também suscetível a erros e acertos, exposto ao destino, mas também absolutamente capaz de decidir o seu caminho. Para o autor, a despeito do sofrimento ou do caminho do sofrimento que vai percorrer, um homem que abdica dos valores universais e da vida é alguém que não entendeu o seu significado (é, portanto, um ser em desespero).

Da mesma forma, educação e ética calcadas nos valores universais resumiriam os atos humanos, ao menos, aquela ideia básica de “não faça nada com o outro que não gostasse que lhe fizessem.”

Por outro lado, para aqueles que acreditam que o autor poderia sugerir que a “verdade é coisa relativa”, na minha opinião, para Dostoiévski, a verdade é única, apesar de ser possível que uma pessoa não a enxergue claramente, como ocorre com a maioria dos seus personagens. A verdade está lá, ela existe, e as suas consequências são reais; aliás, é justamente pela verdade e por meio dos sentimentos verdadeiros que o homem é anjo ou animal. Então, senão por um descaminho, um acidente, as consequências da verdade não acontecerão. A verdade prenuncia o final, o destino. E somente pessoas muito especiais conseguem ver a verdade, percebê-la. Eis o porquê o protagonista de “O Idiota” ser, na verdade, um príncipe, o príncipe Michkin, o único capaz de amar completamente.

Daí, para Dostoiévski, o único caminho é o do Amor, a única forma de se conseguir a redenção dos seus erros é através da transformação do coração, algo possível, mas doloroso o bastante para não ser ambicionado ou percebido por quase ninguém. Eis a forma de entrar no paraíso terrestre identificado por Dostoiévski, um paraíso terrestre tão ou mais próximo do paraíso espiritual do que se imagina ou se ambiciona. Daí o título do capítulo: o paradoxo está no Céu!

Então, Dostoiévski escreve histórias sobre eslavófilos, niilistas, anarquistas, ateus, marxistas, materialistas, cientificistas, etc para mostrar todo o equívoco dos “ismos” na História da Humanidade, para mostrar que o grande paradoxo está em compreender que tudo que descreve é real, de consequências funestas e reais, extrema ignorância, porque, se há alguma salvação para a dor terrena, ela está na alma, na paz interior, no Amor ao próximo.

Bibliografia:

“Gente Pobre”, Dostoiévski, F., Editora 34, SP. 2021.

“O Duplo”, Dostoiévski, F., Editora 34. 2017.

“Noites Brancas”, Dostoiévski, F., L&PM, RS. 2018.

“A Senhoria”, Dostoiévski, F., Editora 34. 2020.

“Um Jogador”, Dostoiévski, F., Editora 34. 2017.

“O Idiota”, Dostoiévski, F., Editora 34. 2020

“Os Demônios”, Dostoiévski, F., Editora 34. 2013.

“O Eterno Marido”, Dostoiévski, F., Editora 34. 2010.

“Os Irmãos Karamazov”, Dostoiévski, F., Editora Martin Claret. 2019.

“Memórias Póstumas de Brás Cubas, Assis, Machado de, Ed. Ateliê Editorial. SP. 2016.

“Quincas Borba”, Assis, Machado de, Ed. Penguin. 2019.

Esaú e Jacó, Assis, Machado de, Ed. Ateliê Editorial. SP. 2020.

Memorial de Aires, Assis, Machado de, Ed Martin Claret. 2018.

[1] Em “O Duplo”, o autor também mencionará que está à procura de seu estilo.

[2] Diversos autores exploraram o tema que, no século seguinte, Sigmund Freud e outros médicos iriam aprofundar. Machado de Assis, com seu conto “O Alienista”, também participou da discussão.

[3] Dois termos característicos do movimento romântico.

[4] Tipo de “filosofia” usada por diversos povos, especialmente nas academias militares, para tratar um povo como “o povo escolhido por Deus”, aquele que fará a grande mudança no mundo. É possível dizer que esta ideia que Dostoiévski tão bem reproduz já está presente no seu primeiro livro, “Gente Pobre”, quando ridiculariza os finlandeses, e irá acompanhar a maior parte das obras do autor — em “O Jogador” ridicularizará franceses, alemães e poloneses, enquanto em “Irmãos Karamázov”, tratará os poloneses com desprezo. Curiosamente, Dostoiévski trata bem os ingleses, talvez por considerar que o tipo de monarquia daquele país seria a mais equilibrada e adequada para a Rússia.

[5] Se eu tivesse a capacidade e ousadia de escrever o último livro da obra, Lisa ficaria boa da sua doença — um milagre — teria vários filhos de Aliosha em alguma cidade do interior da Rússia, onde os trataria com zelo e cuidado, modelo mais consciente de responsabilidade com a nova geração de jovens.

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Isabela Dias

Psicóloga com orientação psicanalítica ferencziana e facilitadora de CNV